Parece que há uma relação estreita entre acaso e distração, mas eu, distraída, fui a última a saber. Tempo atrás, cheguei a conclusão que coincidências podem ser intuição. Mas isso não se aplica ao caso do acaso.
Há dias que meu pensamento insiste em querer desvendar este mistério como quem tenta conjugar verbos irregulares em idiomas inexistentes.Leio livros, ouço canções, pergunto, pesco citações garimpando preciosidades. Numa dessas, na casa do amigo, deparo-me:
"O acaso é, talvez, o pseudônimo que Deus usa quando não quer assinar suas obras."
Pronto! Achei!Certo!!! Mas antes que desfiasse todo o meu rosário de exclamações, o amigo, atento, chama a atenção para a palavra "talvez". E volta toda minha dúvida. Ò Céus!!!
Volto para casa ávida por Nei Lisboa, Cena Beatnik, ali encontraria pistas:
" E o acaso me deixou na porta da tua casa/
Faz silencio e faz de conta que já me esperava/
Que eu tava pra chegar/
Pra ficar e pra sumir sem dar explicação/
Pra me livrar da prisão
Ou só pra te ouvir dizer que não
Só pra torcer o pé
Descendo a escada
De quem não te quer"
(HAHAHA - Torcer o pé descendo a escada de quem não te quer? Baita acaso!!!! Nem precisa Freud para explicar isso.)
Também não solucionou o meu particular enigma. Continuo curiosa e insatisfeita. Proponho a uma turma uma rápida reflexão sobre o assunto. Sim, confesso sem culpa, eu uso a sala de aula como uma oficina de conceitos, um laboratório de idéias, cujos resultados geralmente me surpreendem, mas nem sempre. E, infelizmente, neste caso, nada de muito especial.
Mas, eis que hoje a tarde, saindo de casa, apressada, como sempre, escuto Distração*, de Zélia Duncan. Fez sentido. Mudo meu ritmo e rumo: por outra rua, percebi outras flores e aromas. Na volta, deparo-me com pequenas dádivas que valeram meu dia e os próximos. Um vento sopra do meu inconsciente e me arrasta suave até a biblioteca. Deparo-me com o belíssimo livro que a amiga Lu me indicou com entusiasmo: "Fadas no Divã"** Ali fiquei, mergulhada na leitura (lembrando do papo da colega: a mulher precisa superar a "síndrome da fábula" - a espera de um principe encantado, ser feliz para sempre, bla, bla), enquanto a pequena divertia-se com livros infantis, até nos expulsarem dali. Tão distraídas estávamos que nao percebemos a noite que chegava. A lua, entrando em fase crescente, bem na metade do circulo, já meia garbosa, andou brincando de se esconder com as nuvens nos últimos dias. Tudo por acaso. Quem percebeu?
Notas (para quem quiser se distrair um pouquinho):
*Se você não se distrai, o amor não chegaA sua música não tocaO acaso vira espera e sufocaA alegria vira ansiedadeE quebra o encanto doceDe te surpreender de verdade Se você não se distrai, a estrela não cai O elevador não chegaE as horas não passamO dia não nasce, a lua não cresceA paixão vira pesteO abraço, armadilhaHoje eu vou brincar de ser criança E nessa dança, quero encontrar vocêDistraído, querido Perdido em muitos sorrisosSem nenhuma razão de serSe você não se distrai,Não descobre uma nova trilhaNão dá um passeioNão rí de você mesmo A vida fica mais duraO tempo passa doendoE qualquer trovão mete medo Se você está sempre temendoA fúria da tempestadeHoje eu vou brincar de ser criançaE nessa dança, quero encontrar vocêDistraído, queridoPerdido em muitos sorrisosSem nenhuma razão de serOlhando o céu, chutando lataE assoviando Beatles na praçaOlhando o céu, chutando lataHoje eu quero encontrar você
**Trecho do livro Fadas no Divã, de Diana e Mário Corso
O Rei Sapo
A mais célebre história de um noivo animal e da transformação do repulsivo em atraente é com certeza O Rei Sapo. Nele, um monarca enfeitiçado depende do afeto de uma princesa para voltar à forma original. Uma das mais clássicas cenas evocadas pelos contos de fada é justamente a da bela princesa beijando um repulsivo batráquio, permitindo-lhe o retorno da metamorfose. A possibilidade de um sapo virar príncipe é um bom argumento para o fato de que as aparências não devem ser impedimento para uma relação. Seguidamente as mulheres recorrem a essa história como metáfora, quando argumentam que vale a pena investir em determinado pretendente, apostando mais no que ele se tornará do que naquilo que é no presente. Mas vale a leitura do conto, tal como estabelecido pelos irmãos Grimm, para nos surpreendermos com um fato importante: a princesa também tem lá sua feiúra.
Trata-se da filha mais jovem do rei, como sempre, a mais bela de todas as princesas. Nos dias quentes, ela tinha por hábito brincar com sua bolinha de ouro perto de uma fonte, mas uma vez deixou cair seu precioso objeto na água profunda, fazendo o brinquedo desaparecer. Desesperada, pôs-se a chorar como um bebê, aos gritos. Nesse momento surge um sapo, prometendo alcançar-lhe a cobiçada bola, mas somente se ela concordar em levá-lo para a casa dela. Além disso, teria de lhe aceitar como companheiro de brincadeiras, compartilhar com ele seu prato e admitir sua companhia até na própria cama. A jovem concordou, mas sem a mínima intenção de honrar uma promessa feita a tão desprezível criatura - e aqui ela se mostra uma pessoa bem pouco bonita. Depois de obter a bola de volta, ela foge correndo do sapo, mas ele vai até o castelo e bate à porta, exigindo o cumprimento da palavra da princesa caçula.
Horrorizada com a aparição do sapo, a princesa relata o ocorrido ao pai que, ao invés de apoiá-la, exige-lhe que faça jus à promessa. Assim, tomada de nojo, é obrigada a admitir o batráquio em sua mesa e em sua cama; na hora de dormir, ela não agüenta mais o assédio dele e raivosa o atira contra a parede. Ele, então, se transforma num belo príncipe e ela, numa enamorada princesa.
É surpreendente que o gosto popular recente tenha se apegado a uma cena que simplesmente não existe na narrativa clássica dos irmãos Grimm: a da princesa beijando o sapo. Não só nossa heroína jamais se disporia a isso, como também a transformação não era provocada por um ato de amor e sim de violência. Na atual versão popular, o sapo esclarece à jovem que ele é um príncipe enfeitiçado e, em nome da perspectiva da transformação, ela se sacrifica e vence o nojo, beijando-o. Já nesta narrativa mais antiga, a princesa se envolve com o animal sem esse consolo, a aparição do belo príncipe é uma surpresa que a recompensa pelos maus bocados por que passou.
Ao sermos fisgados pelo amor, temos como conseqüência a saída da casa dos pais para vivermos a relação, porém, isso nem sempre é pacífico. Por mais que os contos insistam que o amor é uma promessa capaz de recompensar pela infância e pela família perdidas, partir é mais fácil para os heróis que têm madrastas bruxas, pais fracos, egoístas ou que são mesquinhos movidos pela fome. Quando o lar convida a ficar, sair será uma operação dolorosa e brusca, que pressuporá algum tipo de expulsão, comumente personificado por um casamento imposto contra os desejos da jovem. Na história do Rei Sapo, o pai da princesa lhe impõe a companhia do ser viscoso em seu leito, submetendo-a à violência desse convívio. O gesto agressivo da jovem está à altura do caráter torturante da situação em que se viu envolvida, mas também é um gesto dramático de rompimento, de revolta contra a autoridade do pai e contra as exigências do sapo. A independência não pode ser construída de submissão, crescer é também perceber a limitação da força e do poder da autoridade parental.
A versão popular do beijo não enfatiza o ato de rebeldia da princesa. Naquele caso, a jovem se dispõe a uma troca vantajosa: ela faz um esforço para vencer o nojo em nome de um amor possível (voltaremos ao tema da repulsa mais adiante). De qualquer maneira, ela se submete, mas o fará somente se isso lhe convier. Um sacrifício movido por uma razão pragmática não é um ato de obediência, é uma troca.
De qualquer maneira, o que é conhecido como um beijo, originalmente foi escrito como um arremesso, sendo assim, não há como suavizar essa trama. Para ocorrer, um amor depende de que um rompimento com a família de origem esteja em curso ou consumado, é necessário que o amor entre pai e filha tenha encontrado uma nova dimensão.
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